Rabiscos # 21 - As marcas que o tempo (não) traz
Sempre fui alérgica a picadas de mosquito. Meus suvernirs das férias passadas no Nordeste eram um tom mais bronzeadinho e inúmeras marcas nas pernas dos ataques dos insetos. Quando criança, indo contra as recomendações insistentes da minha mãe, eu coçava cada uma dessas picadas, o que rendia sempre vaticínios maternos desesperados: “você vai ficar com as pernas todas marcadas!”
Apesar dos prognósticos nada positivos, não fiquei com marcas nas pernas. Até um verão em Iguaba Grande, na casa de um tio, em que fui tão picada (e me cocei tanto) que terminei não com uma marca, mas com uma cicatriz, em formato de cadeira, no final da perna, antes do peito do pé direito.
Talvez porque fossem tempos em que a perfeição dos corpos não era uma ditadura, ou porque eu nunca fui tão ligada nisso, nunca me incomodei com aquela cicatriz. Pelo contrário, sempre a considerei uma marca pessoal, um lembrete daquelas férias de sol, vento, brincadeiras e tempo agradável. Ela me acompanhou por décadas, sempre ali, ao alcance dos olhos, recuperando o sentimento bom da viagem.
Digo que me acompanhou porque outro dia me dei conta de que a cicatriz sumiu. Se até bem pouco tempo ela era nítida, em alto relevo, agora é preciso muito esforço para visualizar um tracinho branco (o encosto da cadeira, que foi tudo que restou).
Minha reação imediata foi de espanto, pois pra mim não existia a menor possibilidade de aquela marca simplesmente sumir da minha pele.
Cicatrizes são percebidas como definitivas. Evidenciam para sempre que naquele local houve um corte, um ferimento, uma intervenção. Proposital ou acidental. Costurada com bisturi ou curada com mertiolate, bandaid e carinho de mãe ou de pai. Uma vez adquiridas, não somem mais, a não ser com procedimentos cirúrgicos (que também deixam marcas, embora talvez mais suaves). Estão tatuadas em nós.
Em seguida, passei pelo estranhamento, como se eu não me reconhecesse mais naquela perna, porque estava faltando ali alguma coisa que sempre esteve. Uma marca. Procurei outras cicatrizes - uma no joelho, ganha correndo atrás de um candidato a governador do Estado em sua campanha eleitoral numa feira em Duque de Caxias, quando atropelei sem ver uma tubulação de metal; outras de queimaduras me aventurando na cozinha; várias causadas pela exposição inadequada ao sol.
Fui me surpreendendo ao perceber que várias dessas manchas sumiram, enquanto outras, bem mais impessoais, haviam aparecido - a grande maioria, provenientes da falta de filtro solar na juventude. Mas se as outras marcas eram lembranças ativas de fatos vividos por mim, estas outras são apenas rastros da vida ou de uma indolência adolescente. Não trazem em si uma recordação ativa e específica.
O que mais me impressionou, entretanto, foi descobrir que até as cicatrizes mudam, somem, se transformam. Nada é definitivo em nossas vidas. E quando estamos diante do envelhecimento, muitas de nós se atentam e se preocupam com as marcas que o tempo impõe em nossas peles. Muitas buscam se livrar destes indícios da passagem dos anos, com resultados positivos (algumas) ou quase desastrosos (outras). Não costumamos prestar atenção naquilo que se apaga em nossas cicatrizes, ou mesmo no seu desaparecimento.
E são elas, estas cicatrizes, que já contaram nossa história. Para nós mesmas, para olhares curiosos e enxeridos, para puxar uma conversa, para quebrar o gelo.
Sinto falta da minha cicatriz-cadeira, em que tantas vezes assentei a memória.
Agora ela só existe na minha recordação, não está mais inscrita em meu corpo, como se a tatuagem tivesse sido removida.