Rabiscos #17 - Adivinhar o que o outro pensa
- Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas.
Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava.
do conto Feliz Aniversário, de Clarice Lispector
Esta semana este conto de Clarice Lispector me veio à mente diversas vezes. Para quem não conhece (ou não liga o título ao conteúdo), ele narra o encontro de uma família para comemorar os 89 anos da matriarca. O texto contrasta o silêncio e aparente alheamento da mãe com a descrição mais detalhada de seus descendentes e o esforço que eles nitidamente fazem para cumprir aquela tarefa social.
Há no relato um profundo mal-estar e um incômodo de quando estamos numa situação por obrigação, seja ela de que natureza for, e só desejamos que aquilo acabe o mais rápido possível. O estilo é seco, cortante, afiado, como apontou Lya Luft na apresentação do conto na coletânea Clarice Lispector na cabeceira, publicada em 2009 pela Rocco: “Clarice usou a linguagem como um bisturi, fino, preciso e cruel, cortando a carne da alma desses personagens, que tanto nos fazem lembrar outros reais, que conhecemos neste mundo concreto.”
A narrativa me fez lembrar do filme “Mamãe faz cem anos”, do cineasta espanhol Carlos Saura, que também parte do aniversário de uma idosa para apresentar as entranhas e o lado menos agradável do seu núcleo familiar (além de falar sobre o fim da ditadura franquista e seus resquícios na sociedade espanhola). Na obra de Saura, os filhos chegam a tramar o assassinato da mãe para usufruírem imediatamente de sua herança.
Lembrei de Feliz Aniversário, conto que li a primeira vez quando ainda estava no Ensino Médio, não por estes aspectos. Não foi pelas relações familiares convencionais, ou pelo que esses relacionamentos escondem de desgostos e mal-quereres.
O que me acionou foi a frase que destaquei no início desta Rabiscos: “Mas ninguém adivinhava o que ela pensava”.
Claro que racionalmente ninguém adivinha o que o outro pensa. Mesmo quando achamos que conhecemos alguém pelo avesso, não podemos garantir que sabemos o que está se passando pela cabeça daquela pessoa. Temos vários elementos que nos ajudam a deduzir (ou a induzir) os pensamentos alheios: um certo olhar, um gesto, um movimento do corpo, uma postura, uma maneira de apertar os lábios ou de pousar a mão. Nada disso, porém, nos dá certeza de saber o que vai na mente de alguém que não seja você mesma.
Nos nossos relacionamentos, vamos nos acostumando a ler estes indícios que contribuem para que entendamos o que um parceiro, uma amiga, um filho, uma colega de trabalho, está pensando. Muitas vezes fazemos interpretações totalmente equivocadas, porque é isso que estas nossas tentativas são: interpretações. Muitas vezes também acertamos, porque nos baseamos no conhecimento que temos da pessoa, no nosso convívio com ela, e mesmo no que ela expressa em várias linguagens verbais e não-verbais.
Porém, quando lidamos com idosos acima dos 80 anos, este sinalizadores parece que somem. Seja porque se tornam mais econômicos nos seus gestos, mais recolhidos, mais silenciosos, menos ativos. Seja por estarem acamados ou por terem doenças incapacitantes. Seja por diminuirem o convívio social e as trocas com diferentes grupos e locais. A interação é um mecanismo que aciona entendimentos de vários tipos, desde o verbal, explícito, direto, até outros mais sutis e sub-reptícios. Provoca também o esforço da enunciação, ou seja, quando interagimos socialmente, precisamos entender o que o outro diz, mas também organizar nossos pensamentos em um formato que seja compreensível para o outro. Ocorre, assim, um processo de organização interna para emissão externa . De acordo com a teoria matemática da comunicação, dos matemáticos e engenheiros Claude Elwool Shannon e Warren Weaver, a partir de uma fonte de informação, o emissor codifica uma mensagem, entre tantas possíveis, transformando num sinal capaz de ser enviado por um canal a um receptor. Esta visão unidirecional, centrada na hegemonia do emissor, atribuindo um papel passivo ao receptor e com apenas dois pólos da comunicação é bastante criticada por diversas correntes do pensamento comunicacional, porém os conceitos de codificação e decodificação permanecem válidos.
Quando envelhecemos e nos distanciamos destes momentos de interação social, parece que também “desaprendemos” a fazer esta codificação inicial. Se não nos expressamos, como o outro vai compreender o que queremos falar? A comunicação vai tornando-se mais rarefeita, porque não se dá sobre bases comuns de entendimento. E, ao mesmo tempo, não é possível adivinhar o que aquela pessoa de idade elevada está pensando, muito embora ela continue raciocinando e formulando, em sua mente, vários pensamentos.
Não estou atribuindo à pessoa mais velha a responsabilidade exclusiva pelo distanciamento social ou pela incomunicabilidade. Existem diversos outros fatores que contribuem, desde condições médicas, ambientais, sociais, urbanas, de temperamento. Não menosprezo nenhuma delas
Voltando à citação que abre esta edição da newsletter, ele abre com a tentativa da idosa em adivinhar o pensamento de sua filha e cuidadora: “será que ela pensa que o bolo substitui o jantar…”. Embora a força do trecho esteja no fato de indicar a solidão existencial que aquela senhora experimentava, já que ninguém conseguia saber o que acontecia dentro de sua mente, ela também dá indícios de que não se esforça para interagir com os que estão à sua volta. A idosa transfere o diálogo que deveria ter com a filha para dentro de sua mente.
Convivendo mais de perto com uma pessoa com 90 anos, tenho visto muitos momentos como esse. Em que o diálogo está difícil não por diferenças geracionais, pontos de vista opostos, divergências ideológicas. Está difícil porque o diálogo migrou do externo para o interno. E não se consegue adivinhar o que o outro pensa.
Até nossa capacidade de comunicação envelhece.