Rabiscos # 22 - As gavetas do desapego
Você deve estranhar essa Rabiscos chegar em pleno domingo, quando me propus a lançá-la às sextas. Ou talvez não estranhe, porque só abre no final de semana, ou mesmo nem repare no dia em que está lendo.
Tudo bem, o importante não é mesmo o dia em que você lê este texto que escrevo semanalmente. Que bom que você está lendo.
Esta semana foi daquelas com muitos imprevistos e trabalhos urgentes que aparecem e precisam ser realizados imediatamente e quando vi já era sábado.
Entre os imprevistos, estava a reforma das gavetas da cozinha. Já algum tempo, o fundo das cinco gavetas da cozinha estavam cedendo, pelo peso dos excessos dentro delas. Fomos convivendo com o problema, forçando a abertura de cada gaveta quando elas se enganchavam nas outras, até que ficou mesmo complicado. Era impossível abrir uma só gaveta sem que todas as outras viessem juntas.
Meu marido se armou de coragem e tiramos a primeira das gavetas, depois de esvaziar tudo o que tinha dentro dela, e começou a estudar como resolver a situação.
Com as ferramentas de casa não deu jeito, então lá fomos nós na casa de ferragens em busca dos apetrechos necessários. Depois de umas marteladas aqui, umas desempenadas ali, o primeiro conserto funcionou. Aí o marido se empolgou e resolveu que ia fazer todas as gavetas de uma vez ( o combinado era fazer uma de cada vez, esperar pra ver se dava certo, mas o sucesso da primeira tentativa o estimulou a esquecer o projeto e partir pra ação).
Enquanto fui esvaziando as outras quatro gavetas, os objetos se multiplicavam, e logo a bancada da cozinha e a cama de um dos quartos estava repleta de coisas.
A grande maioria, coisas úteis. Poucas inutilidades, pois meu lado prático e organizado tende a me impedir de manter aquilo que não tem serventia.
Mesmo assim, muitas coisas.
Por que acumulamos tantas coisas? Muito mais do que seriam necessárias, e o pior, a maioria fica esquecida nas gavetas, prateleiras e cantos de armários, submergindo em camadas de tralhas e outras nem tão tralhas assim.
De tempos em tempos, faço aquela limpeza geral e descarto o que não me serve mais (ou que nunca serviu) mas mesmo assim ainda continuo guardando mais do que gostaria.
Uma possível resposta para esta pergunta não está na afirmativa simplista - ah, você é uma acumuladora - porque definitivamente não gosto de acumular objetos. Tendo a achar que a explicação mora na dificuldade em desapegar das coisas. É olhar para um descascador de legumes e pensar que ele ainda funciona, então por que dispensa-lo, mesmo se já tiver mais outros dois. É pegar nos cortadores de biscoitos e lembrar de todas as vezes em que usei-os com meus três filhos, em tardes polvilhadas de farinha, afeto e risadas. E, imediatamente, planejar fazer o mesmo com os netos.
Desapegar de objetos, no meu caso, parece complicado porque eles estão impregnados das memórias da casa, da minha vida, de outros tempos, de momentos muito diferentes do que vivo agora.
Imagino que seja o que acontece conforme envelhecemos, e por isso é tão comum ver pessoas idosas com casas abarrotadas, especialmente quando se mora por longos períodos no mesmo lugar.
Moro no mesmo apartamento há 30 anos, e sem dúvida este fato contribui para as camadas de objetos guardados. Especialmente quando o lugar onde se mora, como é o meu caso, é espaçoso e tem muitos armários.
A combinação de permanência e espaço é quase um convite para juntar coisas. Quem muda constantemente acaba sendo obrigado a realizar sessões de desapego.
Apesar de tudo isso, com esforço e fechando um pouco os olhos, as gavetas estão de novo nos lugares, arrumadas e mais leves.