Rabiscos # 24 - Para viver na atualidade é preciso informar o token
Estava no laboratório de análises clínicas, num horário já fora do rush do início da manhã. Duas atendentes, em guichês separados. As duas atendiam pessoas de idade, uma senhora na faixa dos 80 anos e um senhor que deveria ter entre 75 e 80 anos. Embora estivesse lendo, não pude deixar de ouvir o que se passava. No primeiro caso, a mulher estava com a filha, que deveria ter uns 50 anos, e não entrara no laboratório porque “estava muito frio”. A senhora informou os exames que iria fazer, entregou cartão do plano de saúde e carteira de identidade, e atendente, depois de digitar durante alguns minutos, lhe pergunta: a senhora recebeu o token?
A mulher não conseguia entender ao que a atendente estava se referindo.
- Token? Não, eu só tenho este pedido da médica.
- Não, no celular.
- Ah, eu não tenho celular. Quem tem é minha filha. Pera aí.
Se levantou, foi até o lado de fora chamar a filha, que entrou cheia de má vontade e irritação.
- Tá, pra quê que precisa do meu celular?
- Não sei, a moça que tá falando de celular.
A atendente tenha novamente:
- O plano vai mandar um token pro seu celular e a senhora tem que me falar, senão eu não consigo liberar o atendimento.
- Manda então pro celular da minha filha. Fala ai o número, filha.
A atendente interrompe:
- O plano só manda pro celular do titular.
- Eu não ando com meu celular, não.
- Então não adianta informar o celular da sua filha.
A filha, ainda mais irritada, dá as costas e vai embora.
A atendente suspira.
A senhora pergunta:
- Então como é que vou fazer o exame.
A atendente então diz que vai ligar pro plano.
(e eu, do meu canto, me indago se ela não poderia ter pensado nisso desde o primeiro momento, poupando a senhora do desconforto de achar que não ia ser atendida).
Ela liga e passa o telefone para a senhora, pois o plano só aceita falar diretamente com a usuária do serviço.
Ouço novamente o diálogo do celular, agora entre a atendente do plano de saúde e a senhora.
- Não, eu não estou com o celular. Você não consegue me dar este token agora pelo telefone, falando comigo?
Não dá para saber o que a atendente do plano responde, mas a senhora começa a confirmar algumas informações pessoais e finalmente parece que o token vai ser liberado e informado na ligação.
Só que não. A senhora vai repetindo em voz alta os números, anota num papel e depois repete para a atendente do laboratório.
- Não está funcionando, falta um algarismo.
- Eu te dei todos os que ela me passou.
- Não está indo, falta um número.
Nova hesitação, novo impasse. A atendente do laboratório decide falar diretamente com a atendente do plano, pega finalmente o token correto, desliga o telefone e a senhora consegue finalizar o atendimento para seguir para o exame.
Eu, da minha cadeira, pensando novamente se tudo isso não poderia ter sido uma ligação rápida do laboratório para o plano de saúde…
Corta para o senhor sendo atendido no outro guichê.
- O médico tem que dizer qual é o tipo de exame.
- Ele colocou aí no papel, moça.
- Não, ele não botou qual era.
- Tá aqui, ó, é esse exame.
A atendente faz um silêncio de quem busca a paciência lá no pé e responde:
- É que esse exame que ele colocou tem vários tipos, ele precisava ter escrito qual tipo era. O senhor vai ter que voltar no médico e pedir pra ele fazer isso.
O senhor fica calado, coça a cabeça, junta os papéis, um pouco confuso e desapontado. Fico na dúvida se ele realmente entendeu o motivo de não poder tirar sangue naquela manhã de calor escaldante.
O mundo está ficando um lugar mais inóspito para os não-nativos digitais, para aqueles que não lidam bem com aparatos eletrônicos, com códigos enviados que evanescem se não são utilizados em um curto intervalo de tempo, com processos que acontecem automaticamente, sem mediação de seres humanos. Como se todas as atividades humanas contemporâneas só pudessem ser mediadas por máquinas e como se todos os habitantes do planeta estivessem habilitados a utilizá-las. Parecem tempos pensados apenas para as gerações que já nasceram digitais, o que é um tremendo paradoxo, pois estamos vivendo mais. As pessoas que hoje têm 80 anos, mesmo se tiveram uma vida laboral ativa, desempenharam essas atividades majoritariamente antes do advento dos computadores pessoais, ou da explosão da internet ou mesmo da automatização de processos como a autorização para fazer um exame.
Lembro que na minha primeira gravidez, a cada vez que eu precisava fazer um ultrassom, tinha que ir até um posto de atendimento do plano de saúde, presencialmente, pedir a autorização para o exame. Demorava horas (literalmente). Assim como eu, provavelmente aquela senhora do início do texto também fez isso várias vezes. E deve ser muito mais confuso para ela receber um token no celular, um aparelho que ela mal sabe utilizar, ainda que muitos de nós celebrem a agilidade do processo atual.
Da mesma forma, médicos e outros atendentes parecem cada dia mais despreparados para lidar com pessoas mais velhas, que viveram a parte parte de suas vidas em uma realidade analógica, com contatos pessoa-a-pessoa. Em vez de facilitar o entendimento dos processos, eles se irritam, perdem a paciência, ou muitas vezes são lacônicos e extremamente impessoais.
Corta para uma cena presenciada hoje. Entro na fila do caixa do supermercado e a atendente está falando num tom já irritado e impaciente com duas senhoras que finalizam sua compra.
- Deu senha inválida. Retira o cartão. Tem que fazer de novo. Pera! (a irritação sobe mais um tom). Isso. Agora. Tenta de novo. Senha inválida, de novo. (suspira). Tem que fazer de novo. Retira. Põe o cartão. Senha inválida. A senhora não tem aproximação, não?
Ao que a senhora olha meio em dúvida, não parece entender o que a moça lhe pergunta. Cara de contrariedade da atendente.
- Tenta de novo. Senha inválida. Vai bloquear o cartão (revira os olhos).
Mudo de fila porque a outra caixa me chama, e fico de frente pra situação. A segunda senhora resolve pagar, erra também duas vezes a senha. Na terceira acerta. As duas sorriem, aliviadas. A atendente não sorri, está cada vez mais carrancuda, embora aliviada de ter se livrado das duas idosas.
Penso em todas as vezes que já errei a senha em algum pagamento. Pelo menos não recebi nenhum olhar de reprovação e impaciência da pessoa que me atendia (é o que acho, posso estar enganada rsrs).
O etarismo vai muito além de aceitarmos rugas e cabelos brancos como parte do viver longos anos. Está presente também quando, como sociedade, não nos atentamos para o quanto excluímos pessoas e grupos sociais e/ou etários porque elas não acompanham o desenvolvimento e a implantação de tecnologias como outros grupos.
Se queremos ser inclusivos, vamos precisar saber lidar com o fato de termos pessoas cada vez mais longevas, que demandarão serviços que realmente dialoguem com elas e não as afastem do mundo.