Rabiscos # 27 - Presentes são reflexos dos nossos interesses
O que se dá de presente para uma pessoa que completa 91 anos? Eu me peguei fazendo esta pergunta a semana inteira, enquanto definíamos o que iriamos dar de aniversário para minha sogra. O que me fez ficar ruminando a indagação foi, em primeiro lugar, o problema de ordem prática - isto é, escolher um presente e efetivamente compra-lo. Além desta resolução de ordem mais operacional, entretanto, me pus a pensar em como, conforme envelhecemos, as pessoas vão tenho ainda mais dificuldades em nos presentear.
Pense numa criança. Como é fácil comprar um brinquedo (ainda que vendedoras das lojas especializadas continuem fazendo o direcionamento estereotipado a partir da indagação se o presente é para menino ou menina), e, na sequencia, como é fácil que este brinquedo agrade quem vai ganhá-lo.
Pense num adolescente. Se você convive com ele, talvez compre alguns presentes que serão considerados “equivocados”, mas sempre é possível acertar no tom após uma pesquisa básica com os amigos, os irmãos ou até perguntando diretamente.
Pense num namorado/namorada ou companheiro/companheira. A cumplicidade afetiva vai fazendo com que você conheça os gostos, saiba das expectativas, reconheça os desejos e também consiga agradar em cheio.
Pense numa amiga ou amigo próximo. Certamente vocês têm uma proximidade que também permite que você saiba exatamente o que dar a ela ou ele. Você reconhece as preferências, as implicâncias, pode até se arriscar a um presente bem-humorado.
Agora pule para aquela pessoa idosa da família. De repente, por mais que você a conheça, você não consegue saber o que comprar. Começa a repetir os presentes - colônia, sabonete líquido, hidratante. São presentes funcionais, que com certeza ela irá usar, mas todo aniversário, Natal, data celebrativa?
A dificuldade sem dúvida está relacionada com as condição de saúde e sociais de cada pessoa idosa em questão. Muitas estão mais recolhidas, saem pouco de casa - o que diminui bastante a necessidade por roupas. Ou necessitam de roupas com determinadas características (abotoamento frontal, fáceis de vestir, maiores ou menores etc), o que nem sempre é fácil de encontrar. Outras tantas não conseguem ler mais como liam (ou nunca tiveram o hábito da leitura), o que também nos fazem riscar livros da lista de presentes. Por serem idosas, na maioria das vezes sua casa já está equipada com o necessário para suas vidas, o que também risca utilidades domésticas e produtos de decoração (obviamente, em um país como o Brasil, esta não é a realidade de muitas pessoas com mais de 60 anos. Falamos aqui a partir de uma perspectiva de classe média). Também fica complicado dar aquele gadget de última geração, se a pessoa idosa enfrenta dificuldades em manusear o celular mais básico.
Parece que dar um presente para alguém a partir de uma certa idade é sempre optar por presentes funcionais e artigos de higiene pessoal.
Muitos podem argumentar que, à medida em que envelhecemos, vamos necessitando de novos objetos, porque os que já acumulamos nos atendem plenamente. A necessidade de reposição desses bens seria, portanto, menor do que para alguém em fase de crescimento. Ou para quem está em plena atividade laboral, por exemplo.
A aposentadoria total parece funcionar também como este marco para que uma série de itens presenteáveis suma da lista. Sem a obrigação cotidiana do trabalho, é como se a pessoa também passasse a precisar de menos coisas. Os sapatos gastam menos, idem para as roupas, bolsas, acessórios, até mesmo guarda-chuvas.
Este argumento até pode estar correto, mas me parece que ele esconde também uma certa percepção de que ao envelhecer perdemos os nossos gostos pessoais. Estamos apenas existindo e não mais nos interessamos pelos aspectos lúdicos, estéticos da vida, para além da funcionalidade.
É na manutenção dos nossos gostos pessoais que damos pistas a quem nos deseja presentear sobre aquele regalo que irá fazer “sucesso”.
De um modo geral, o que encontramos é um duplo movimento. Por um lado, a prevalência desta percepção de que uma pessoa mais velha não tem gostos pessoais, nem preferências - pode ter até manias, mas não um perfil próprio.
Por outro, é o idoso quem acaba abdicando de seus interesses, seja por condições ligadas ao seu quadro de saúde, pelo crescimento dos filhos, pela solidão causada por separações ou viuvez, pela perda dos amigos, pela aposentadoria, pelo isolamento social.
Talvez tenhamos que caminhar na direção de um olhar menos estereotipado por parte dos mais jovens em relação aos mais velhos - o etarismo é um dos modos de discriminação mais fortes da nossa sociedade.
E talvez também precisemos construir a noção, conforme envelhecemos, de que mais anos não representam menos interesses, gostos, habilidades, aptidões. Pode ser que nossas condições econômicas, sociais, de saúde, mentais, entre outras, não nos permitam usufruir totalmente desses gostos. Mas isso não pode significar deixar de ter apetite pela vida.
É neste caminho que muitos e muitas que estão sessentando por estes tempos escolhem seguir. Ressignificando também o que cada um de nós vive como velhice, para que não estejamos fadados a ganhar os mesmos presentes a cada ano.