Nos últimos dez dias o assunto não pode ser outro: a emergência climática no Rio Grande do Sul, efeito direto das mudanças globais no clima agravadas pelo desprezo de políticos e empresas à questão ambiental.
As imagens são impactantes, desoladoras, desnorteadoras. A destruição está por toda parte do estado, que teve cerca de 85% de seus municípios atingidos. Se no momento em que escrevo isso as águas do Guaíba começam a descer, por outro lado a Lagoa dos Patos transbordou, afetando outras cidades.
Em meio a informações sobre o alagamento, há também notícias sobre a imensa rede de solidariedade que se formou em todo o país, recolhendo donativos. Um esforço positivo, um suporte afetuoso brotando espontaneamente de pessoas, instituições, religiões e até empresas.
Ao mesmo tempo, pululam informes sobre saques, invasões e estupros nos abrigos. Como diz um amigo, o ser humano não falha. Se conseguimos ser generosos, empáticos e prestativos, também sabemos ser gananciosos, oportunistas e insensíveis. A dor assume múltiplas facetas nas terras gaúchas .
Na aula de hoje da disciplina que divido com minha amiga Ana Lúcia Araújo, ela fez uma pergunta aos estudantes: repararam que nas imagens de resgate de pessoas ilhadas pela inundação a maioria é de idosos e idosas? Nas fotos e vídeos que circulam nos telejornais e nas redes sociais, há poucas crianças.
O que explicaria esse fato? Um estudante arriscou que as pessoas mais velhas têm em geral mais dificuldade de locomoção e isso faz com que sua retirada de áreas alagadas seja mais noticiável que a das crianças ou dos adultos.
São os famosos critérios de noticiabilidade, que fazem com que alguns assuntos sejam noticiados e outros, não. Critérios que, embora se pretendam objetivos, possuem uma forte carga de subjetividade (só isso explica o fato de os veículos jornalísticos do Rio e de São Paulo terem praticamente ignorado as chuvas no Rio Grande Sul, ofuscadas pelo show da Madonna - e aqui não vai nenhuma crítica ao evento em si, mas à cobertura desigual que a mídia produziu em relação aos dois assuntos).
Aventamos que talvez a população gaúcha acima de 60 anos seja superior à de 0 a 14 anos, pois esse é o caso do Estado do Rio de Janeiro, segundo o IBGE. E também é o caso do Rio Grande do Sul - há 1.906.510 gaúchos de 0 a 14 anos, contra 2.193.416 acima dos 60 anos. Uma diferença de 200 mil pessoas, que não parece ser suficiente para que as crianças não apareçam (ou sejam uma presença bem tênue) nas imagens midiáticas das inundações e dos resgates.
É possível pensar que há uma preocupação dos veículos em não expor menores de idade, o que parece bem sensato, mas não tenho tanta certeza a esse respeito.
De todo modo, não pude deixar de pensar em como idosos, de um modo geral, tornam-se ainda mais vulneráveis em situações limite como essas. Em como até colocar em funcionamento o instinto de sobrevivência parece ser difícil e depende do auxílio de outras pessoas. E nem estou mencionando aqueles que necessitam de equipamentos para respirar ou se deslocar, como balões de oxigênio ou cadeiras de rodas.
Claro que muitos com mais de 60 anos não se encaixam nesse quadro que desenhei. Ele está mais condizente com a imagem de uma senhora aparentando uns 70 anos, sendo carregada no colo de um homem de uns 40 anos. No rosto, um misto de terror e alívio, os pés descalços, a blusa meio enrolada deixando parte do dorso exposto. Entregue nos braços de alguém que não se sabe se ela conhecia ou se era um voluntário nas ações de resgate.
Sua figura ficou comigo durante boa parte desses dias, como a personificação da impotência dos mais velhos frente ao desastre.
Em geral quando falamos de emergências climáticas e dos impactos ambientais do desequilíbrio do clima, projetamos as consequências para as futuras gerações ou mesmo para as crianças e jovens do presente. Esta ideia cai por terra por dois motivos - primeiro porque a emergência é agora, não daqui a alguns anos. Está acontecendo nesse momento, em nosso país. E segundo porque não são apenas os mais novos os afetados. Também os idosos são impactados de maneira inexorável. Precisamos refletir mais sobre como as mudanças climáticas afetam as pessoas mais velhas.
Neste momento, somos todos chamados a ajudar, cada um dentro de suas possibilidades. Procure instituições sérias e tome cuidado com as fake news e os aproveitadores de plantão.
E, fundamental: nas eleições de outubro, em que vamos escolher prefeitos e vereadores, procure conhecer as propostas (e as ações) dos candidatos em relação ao meio ambiente e à atenção às mudanças climáticas. Políticos têm sua parcela enorme de responsabilidade na atual situação, seja pela falta de investimento em projetos de que possam minimizar eventuais desastres ambientais, seja pelo descuido na fiscalização de empresas poluentes, seja pela licenciosidade com que tratam a legislação ambiental.
Estou acompanhando seus textos e reflexões sobre o dia a dia da pessoa idosa. Tô gostando muito, Lucia. Parabéns!