Estou no processo de renovação da carteira de motorista, que vence dia 17 de junho. Sei que esta burocracia é cíclica, se repete a cada 5 anos, mesmo assim suspiro a cada nova edição. Interagir com o Detran RJ, até para coisas bem simples, pode se transformar numa releitura de Kakfa, sem que isso represente uma homenagem aos 100 anos de falecimento do famoso escritor austro-húngaro/tcheco.
Desta vez até que não posso reclamar (muito). Fiz o processo todo pelo atendimento digital, graças ao fato de ter um login gov.br (um cadastro no sistema integrado do governo federal). Foi rápido e simples, já que todos os meus dados estavam lá. Ao mesmo tempo em que é o supra-sumo da facilidade, não deixo de ficar inquieta com o fato de um governo ter acesso a todos os meus dados pessoais. Quem já leu Foucault não dorme em paz com a possibilidade da biopolítica na tela do seu computador.
No dia marcado para coleta de digitais, assinatura e foto, lá fui eu ao posto do Detran. Posto vazio, bem diferente das minhas últimas vezes. Uma pequena fila de duas pessoas. Quando chegou a vez do próximo a ser atendido, uma senhora com o andar oscilante, se equilibrando de uma perna para a outra, se levantou de uma cadeira, agradeceu ao rapaz que estava na fila e se dirigiu ao guichê de atendimento. Assim como eu, ela estava renovando a carteira de motorista.
A primeira coisa que me ocorreu: não é possível que esta pessoa, que mal consegue caminhar, ainda dirija. Olhei para ela com mais atenção, reparando nos sinais de fragilidade por conta da idade. Eram muitos: as mãos trêmulas, uma certa dificuldade de ouvir, uma lentidão no corpo e no raciocínio.
“Será que ela não deveria parar de dirigir?”
Ao mesmo tempo em que pensei nisso, me censurei, me auto-acusando de etarismo. Afinal, meu julgamento estava apenas baseado nos sinais aparentes da idade. Não troquei nenhuma palavra com a senhora, apenas deduzi, pelo que observava, que ela não tinha mais nenhuma condição de conduzir um veículo.
Tenho convicção que, conforme a idade avança, os reflexos e a mobilidade vão diminuindo e que isso pode tornar perigosa a direção. Mas isso não se aplica somente a pessoas idosas, e nem a todas as pessoas idosas. Está muito mais relacionado com as circunstâncias físicas ou mentais que trazem riscos ao próprio motorista e aos demais condutores e pedestres. Pelo declínio de várias funções do organismo, é possível que muitas pessoas mais velhas realmente não possam (ou não devam) mais dirigir. Como também pode ser que muitos jovens ou adultos de meia-idade não devessem andar pelas ruas guiando automóveis. Não se trata exatamente de uma questão de idade, mas de capacidade.
O ponto aqui é que temos muita dificuldade em escapar do etarismo. Mesmo quando estamos a dias de ser oficialmente considerados idosos (precisamente, o meu caso), ainda raciocinamos com os modelos mentais que julgam que alguém se torna incapaz de fazer algo apenas porque atingiu um determinado patamar etário.
Deveriam ser estes os nossos parâmetros?
É curioso como incorporamos os padrões e a mentalidade dominante, mesmo quando não nos encaixamos nela ou quando queremos racionalmente contestá-la.
Da mesma maneira como adolescentes sofrem o impacto das pressões da sociedade em torno do corpo perfeito (e irreal), parece que, ainda que hoje experimentemos a velhice com outras perspectivas, em termos de saúde, atividades, disposição, aparência, projetos etc, ainda seguimos aplicando preconceitos e discriminando com base na idade.
A luta contra o etarismo começa em cada um de nós, sejamos de que idade formos.
Amanhã, oficialmente, ingresso na categoria de idosa, de acordo com o Estatuto do Idoso do Brasil. Sentimentos contraditórios me habitam. Orgulho de ter chegado até aqui com um companheiro de vida que é meu parceiro, com três filhos (e seus parceiros) que amo em sua inteireza, com os netos que chegaram na última década, com gatos que amam deitar na rede comigo, com saúde, disposição, alegria, algum aprendizado e bom humor. Por outro lado aquela sensação comum a tanta gente - que tudo, mas tudo mesmo, passou muito rápido.
Quando contabilizo tudo o que já vivi, sei que não foi assim tão veloz. Sintetizar pode ser reducionista. Nenhuma vida merece ser só síntese. Que saibamos viver nosso tempo com afeto, amor e sabedoria. Um beijo carinhoso a todos e todas que me lêem aqui.
Parabéns por seu texto e por essa linda idade.