Rabiscos #35 - Esqueço tudo mas quero lembrar do que importa
Um pouco antes do meu aniversário, um amigo comentava que logo depois da fazer 60 anos começou a esquecer as coisas. E ainda me advertiu: você vai ver! Final de semana passado, outro amigo, que já fez 60 anos há mais anos, me contava que vive esquecendo coisas básicas, tipo onde colocou o açucareiro quando estava fazendo café. Segundo ele isso se tornou tão frequente que praticamente se tornou devoto de São Longuinho (reza a lenda que este é o santo dos objetos perdidos).
Enquanto ele falava, fiquei pensando que eu sempre fiz dessas coisas. Não consigo achar que seja algo típico da idade, ou seja, uma decorrência do envelhecimento. Pra mim, sempre esteve relacionado com ser muito, mas muito distraída.
Quando pequena, várias vezes escovei os dentes com o creme de barbear do meu pai, que tinha uma embalagem do mesmo formato que o do dentifrício. Já cansei de errar o caminho que estava fazendo, por pegar a direção habitual para o trabalho. São inúmeras vezes em que esqueci o que estava falando no meio da frase… e isso aos 20, 30 anos. Pode ser que eu fique ainda mais distraída, que isso piore ao ingressar oficialmente na terceira idade, mas não por ter ficado velha.
Essa associação que fazemos entre velhice e esquecimento talvez esteja ancorada em dois aspectos que podem concorrer de forma paralela: o primeiro é no preconceito que temos com quem envelhece. A idade se torna sinônimo de perda, de desgaste, de ausência, em todos os sentidos, inclusive os relacionados com as práticas de memória.
O segundo tem a ver com o uso que as próprias pessoas mais velhas fazem de sua memória.
Como se fosse um ciclo nada virtuoso: já que a partir de uma certa idade diminuímos nossas interações sociais, nossas obrigações familiares, nossos compromissos profissionais e até mesmo deixamos de trabalhar, também nos parece não ser tão necessário acionar nossos equipamentos cerebrais, em especial os mecanismos que nos fazem lembrar.
Quase como se fôssemos assumindo as características que a sociedade nos atribuiu e começando a nos comportar de acordo com este enquadramento.
Obviamente sei que existe degeneração celular, e que muitas pessoas enfrentam doenças neurológicas que de fato causam perdas significativas de memória. Não é a esses casos sérios e irreversíveis que estou me referindo.
Estou falando de como introjetamos essa percepção popular de que velho esquece é de que esquecer é condição normal da velhice.
Esquecemos ao longo da vida toda. Do contrário, seríamos como Funes, o memorioso, do famoso conto de Jorge Luís Borges, que se lembrava de absolutamente tudo. Não conseguia esquecer.
Precisamos esquecer. Pra abrir espaço pra novas memórias, para aquelas que realmente importam, as que se inscrevem em nossos corações. Quero sempre lembrar do que importa, não me preocupo se não me lembro onde estacionei o carro no shopping. De alguma forma, vou encontrá-lo, mesmo que precise convocar a ajuda de São Longunho.