Rabiscos #79 - Aprendendo a dirigir (de novo)
Sempre quis dirigir. Mal completei 18 anos me inscrevi numa auto-escola do Automóvel Clube do Brasil, instituição da qual meu pai era sócio. A gente aprendia nuns fuscas velhos. Os bancos nem regulavam, eram fixos no maior espaço possível. Como meus pés ficavam longe dos pedais, o instrutor colocava um catálogo telefônico encostado no assento para que eu alcançasse a embreagem, o freio e o acelerador.
Apesar da tosquice (ou, quem sabe, por causa dela), aprendi a dirigir, e sigo gostando de fazer isso até hoje, ainda mais depois de ter descoberto a facilidade de conduzir um carro automático.
Dirijo há tantas décadas que não imaginava que iria me sentindo aprendendo novamente a dirigir.
Aluguei um carro na Cidade do Cabo. Todas as informações que li antes de vir afirmavam que a cidade não conta com um bom serviço de transporte público. E várias versões diferentes a respeito da segurança de usar Uber.
Claro que já sabia que na África do Sul se dirige pela esquerda. Herança do colonialismo inglês, que dominou o país a partir do século XX, depois de um conflito com os holandeses que desde 1652 já haviam se apropriado da região.
Eu já havia dirigido pela esquerda, na “mão inglesa”. No Rio de Janeiro temos poucas ruas que seguem esta direção (onde fica a policlínica de Botafogo é uma delas), e existe até o estacionamento de um shopping que adota o trânsito pela esquerda.
Mas tinha feito isso guiando um carro com volante também à esquerda. O rolo começa quando se entra no carro e se dá conta de que tudo, absolutamente tudo que está há anos automatizado no processo de conduzir um automóvel, está espelhado.
É como aprender a dirigir novamente, com a mesma tensão e insegurança do início. Quando estava no fusquinha, com o catálogo telefônico nas costas, a cada buzinada que eu ouvia eu achava que era comigo. Vários anos depois, me peguei com a mesma percepção, ainda mais porque na Cidade do Cabo o pessoal gosta muito de usar a buzina.
Fui relaxando conforme me dei conta de que estava experimentando tudo o que vivenciando no início da minha vida de motorista. Estava aprendendo a dirigir novamente.
Ao mesmo tempo que isso me dava borboletas na barriga, a cada momento em que eu lembrava que a alavanca da seta fica à direita e não à esquerda, ou que para abrir o vidro do carro eu tinha de procurar um botão à minha direita e não à esquerda, me sentia feliz com a conquista!
Lembrei do meu marido dizendo que aprender uma coisa nova exercita o lado direito do cérebro, criando novas conexões neurais. Sei que está é uma das formas de trabalhar pelo envelhecimento ativo.
O difícil foi entender que este posicionamento do carro nas faixas de rolamento modifica, na verdade, toda a forma como ocorre o deslocamento de carros e de pessoas no espaço. Quando dirigimos pela direita, a ultrapassagem é pela esquerda. Demorei pra entender que nesta nova condição eu precisava ultrapassar pela esquerda - e que a faixa mais lenta era a da esquerda e não a da direita.
Andando a pé me dei conta de que as pessoas também se movimentam “ao contrário”. O sentido de ida é pela esquerda, o de volta é pela direita. Para quem passou anos fazendo de outro jeito, parece que se está errado. Mas existe um jeito certo de se deslocar pelo mundo? Qual deve ser o padrão? Ou melhor: existe um padrão? Ou ele é cultural?
Logicamente, em se tratando da indústria de carros, ela monta os automóveis para atender a mercados específicos, os quais se organizam em um padrão determinado. Não é possível que os dois sistemas convivam simultaneamente, seria o caos. Neste caso, cada local precisa fazer uma escolha - e essa escolha também repercute em outras dimensões da organização da sociedade.
Afora todo o esforço mental que este aprendizado me exigiu, ele também me levou a pensar sobre estas convenções, que são sempre culturais. Não é possível considerarmos que o correto é dirigir pela esquerda ou pela direita. Cada país, por motivos distintos, adota o seu sistema, que para além de apenas um modelo rodoviário, se torna parte da sua mentalidade.
Um modo de se comportar no espaço que está além da máquina carro, se espraia pelas calçadas e influencia até a porta que se usa para entrar num museu ou shopping. Se se dirige pela esquerda, todas as entradas, mesmo a pé, serão por este sentido.