Quarta-feira de cinzas. Procurando um episódio novo de podcast para ouvir como faço na maioria das manhãs, o tocador me indica o The Daily. Produzido pelo The New York Times, é o podcast que inspirou o nosso famoso Café da Manhã, da Folha de São Paulo. Em cerca de 30 minutos, o apresentador entrevista um especialista (na produção estadunidense, na maior parte das vezes um jornalista do veículo; no caso brasileiro, são dois apresentadores entrevistando repórteres da Folha e/ou especialistas, muitos deles também colunistas do periódico). O assunto é sempre algum tema relevante que esteja em evidência no dia ou na semana.
Naquela manhã meio morna e meio quente, o tema era o problema Biden que os Democratas não podem mais ignorar (Ouça aqui, em inglês)
Resumindo: o tal “problema Biden” tem a ver com a sua idade e a viabilidade de sua candidatura à reeleição. O atual presidente dos Estados Unidos tem 81 anos, completados em novembro de 2023, e ostenta o título de pessoa mais velha a ocupar o cargo naquele país.
A preocupação não surgiu agora, tanto que à época do aniversário de Biden, em novembro de 2023, vários veículos jornalísticos publicaram reportagens sobre os temores da população quanto à sua idade (curiosamente, seu principal oponente, Donald Trump, é apenas 4 anos mais novo, sem que se duvide da sua capacidade em querer voltar a dirigir o país - pelo menos não pela questão etária).
O que fez o assunto voltar à pauta jornalística foi o relatório divulgado em 8 de fevereiro de 2024 pelo procurador especial Robert Hur. Hur foi nomeado pelo Procurador-Geral dos Estados Unidos, Merrick Garland para verificar os motivos pelos quais Biden manteve documentos sigilosos da época em que era vice-presidente e mesmo de períodos anteriores, quando estava no Senado. Os documentos foram encontrados em seu escritório e em sua casa em Wilmington, no Estado de Delaware.
Cabe destacar que Hur tornou-se procurador federal por indicação de Trump, e que foi escolhido por Garland para a investigação por ser Republicano - o que não levantaria eventuais acusações de favorecimento em seu parecer, caso fosse Democrata como o atual presidente.
Depois de um ano, o procurador emitiu seu relatório1, definindo que não havia crime para incriminar Biden. A polêmica foi um dos motivos apontados por Hur: a memória do presidente. Ou, nas palavras de Hur, “Mr. Biden's memory was significantly limited”.
A resposta oficial não demorou, com declarações do próprio presidente assegurando que sua memória é boa, com o reforço de neurologistas afirmando que a dificuldade de esquecer datas ou nomes, principalmente sob estresse, faz parte do envelhecimento natural.
Antes de continuarmos, um esclarecimento. Este texto não pretende defender/contestar que o atual presidente dos Estados Unidos tem condições ou representa a melhor proposta para as eleições naquele país. Meu ponto não é esse, até porque este cenário tem muito mais camadas. Por mais que tenhamos respirado aliviados quando Trump perdeu a eleição em 2020, não podemos nos esquecer que os governos democratas sempre estão envolvidos/patrocinando guerras. Por outro lado, republicanos estão sempre em busca de segregar, separar, construir muros. Enquanto uns são ameaças externas, outros são ameaças internas. Nesse jogo não há mocinhos e bandidos, esta dicotomia não se aplica. Nós, enquanto países periféricos, temos que ter consciência destas perspectivas.
Enquanto o relatório dá munição política aos Republicanos na disputa eleitoral, ele acende também o questionamento: o que significa ser velho para fazer alguma coisa? Existem parâmetros específicos? Fisiológicos, psicológicos, sociais? Ou apenas culturais? Ou políticos? Ou no fundo apenas a visão de que a idade é um sinônimo de inaptidão ou de ausência de competência para exercer uma determinada atividade?
A questão da idade de um presidente se torna mais crucial para sua candidatura do que suas qualidades ou erros, sua estratégia política, sua condução econômica, sua política externa ou sua ideologia. Idade aqui vira sinônimo ou atestado de competência ou seu contrário, de não-competência.
Esta forma de pensar nos atravessa em muitos momentos. Quando dizemos que uma determinada pessoa não pode mais dirigir porque “está com idade avançada” (mesmo sem sabermos se ela teve alguma perda das suas capacidades motoras, visuais e cognitivas), ou que está na hora de parar de trabalhar porque “já passou da idade”, ou porque “na sua idade não dá mais para fazer isso ou aquilo ou aquilo outro”.
Por outro lado, vejo um contraponto no Papa Francisco, de 87 anos, que é o terceiro Papa mais velho a governar a Igreja nos últimos 700 anos. Ele não é apenas o Chefe da Igreja Católica, mas também preside um país, o Vaticano, guardadas as devidas proporções entre esse Estado tão pequeno que cabe dentro de uma cidade e os Estados Unidos e o Vaticano, tanto em população, quanto em tamanho, em economia e mesmo em assuntos internacionais etc. Não se trata de comparar realidades distintas, mas de salientar que não se vêem reportagens levantando a idade do papa como uma questão.
Volto a indagar que critérios nos indicam os limites para se exercer uma função ou atividade. Não me parecem claros, e sim nitidamente envolvidos em etarismo. E, em alguns casos, também utilizáveis em competições políticas.
no caso específico de Biden, confesso que a série (e o tipo) de confusões em suas declarações me preocupam.