Rabiscos # 26 - Os tempos que o tempo não dá
Quase que esta newsletter não sai nesta semana. Tecnicamente, não saiu, já que a semana acaba aos sábados. Mas para mim o primeiro dia da semana nunca foi o domingo, e sim a segunda. Então ainda estou na semana passada :).
No fundo, será que isso importa mesmo?
O tempo é uma convenção, assim como os dias, as semanas, os meses. Leio que em breve podemos ter que adicionar um novo ano bissexto, por conta das mudanças climáticas que estão alterando a rotação da Terra1. Mas em vez de termos mais um dia, vamos diminuir 24 horas no calendário.
Será que vamos sentir falta destas 24 horas?
Quase todo mundo com quem convivo se queixa da falta de tempo, de estar sempre devendo tarefas, de ter a sensação de sempre correr atrás de algo que deveria ter feito e não fez, e, o pior de tudo, de não conseguir descansar o suficiente nos intervalos destas tantas tarefas e correrias. A vida nos grandes centros urbanos é mesmo demandante, gastamos longas horas em deslocamentos e por vezes estamos presos em atividades repetitivas e pouco recompensantes. Nem todo mundo tem a felicidade de trabalhar com o que gosta ou deseja, o que torna tudo ainda mais cansativo e aumenta esta sensação de ausência de tempo para viver. E muitas pessoas ainda acumulam múltiplas funções, especialmente as mulheres, que desempenham duas ou três jornadas a cada dia.
É possível que se diga que este ritmo alucinante é consequência direta do modelo econômico que adotamos, o que sem dúvida não contesto. Mas sempre me ocorre pensar que mesmo antes de estarmos imersos no capitalismo e no neo-liberalismo, alguns grupos já viviam esta sensação de trabalho ininterrupto - as classes mais pobres, os escravizados, aqueles que dependiam única e exclusivamente da sua força de trabalho para comer e sobreviver - esses sempre estiveram sob o signo do não-descanso. Para eles, o tempo sempre foi o tempo do trabalho.
Volto do trabalho no metrô lotado. Vejo rostos de trabalhadores e trabalhadoras exaustos. Muitas vezes me cedem o lugar para sentar - uma atitude impulsionada provavelmente pelos meus muitos cabelos brancos. Chego a ficar meio envergonhada, porque, pelas fisionomias deles, me parecem muito mais cansados e necessitando de sentar do que eu. E isso não tem a ver com a idade, com o número de anos vividos. Está muito mais relacionado com como cada um consegue passar pelo tempo, com a vida que coube a cada pessoa viver, dentro das restrições sociais, econômicas, políticas, históricas, geográficas.
As marcas do tempo em cada um de nós vão além da epiderme: também se fazem nas escolhas que temos (ou que não temos); estão embricados pelos nossos pertencimentos sociais, culturais, de classe, gênero, raça. São desiguais e machucam mais alguns grupos que outros.
Contar o tempo é uma convenção, ainda que uma necessidade humana, para organizar a agricultura, a colheita, as atividades econômicas, os regimes escolares, as férias dos trabalhadores. Mas o tempo, sem dúvida, passa numa cadência própria para cada um de nós. Experimentamos a realidade temporal de uma maneira diferente, a cada momento histórico, e de acordo com nossos contextos. Tanto é que existem pelo menos 40 calendários em vigor atualmente, coexistindo com o hegemônico calendário gregoriano, adotado no século XVI.
Quando dizemos que não temos tempo, talvez estejamos conseguindo chegar no ponto central da nossa existência: o tempo não nos pertence, embora passemos a vida tentando controlá-lo.
Diminuir 24 horas ou mesmo acrescentar 24 horas em um ano não vai mudar nossa percepção.
O tempo não dá tempos.